domingo, novembro 02, 2008

Guido Mantega e a mendiga

por Sylvio Micelli

Vou à janela do meu quarto acender um cigarro. No sábado à tarde pretendo dormir um pouco após o saboroso almoço que minha mulher preparou. Sobre a cama, ela já sonada e meu filho, com alguns brinquedos, aguardam-me para dar a eles o carinho que só o amor de família pode proporcionar.

Pela janela deparo-me com uma cena insólita, que todos sabemos que ocorre, mas pouco de nós 'perde tempo' para analisá-la. Enquanto trago um cigarro, mesmo sabendo do mal que certamente ele me faz, observo uma senhora. Deve ter uns 60 anos. Tem o rosto e as mãos carcomidos pelo deus Cronos e analisa criteriosamente o saco de lixo, que há pouco coloquei para ser retirado.

Algo habitual e rotineiro, os lixeiros visitam minha rua aos sábados e como decidi descansar um pouco, pus o saco de lixo antes do horário habitual. Aliás é deveras comum eu perder o horário do amigo lixeiro e só lembrar da coleta quando ouço os pneus cantando na esquina da minha casa.

Esta senhora analisa meu lixo criteriosamente. Ela está alheia aos carros e cachorros que passam pela rua. Conceitos de limpeza - ela aje sem luvas - e vergonha, há muito deve ter sublimado.

Digo a vocês que não há nada demais em meu lixo físico, daquele que pode ser mensurado. Material inservível que advém da raça humana, restos de cascas do preparo da comida, algumas latas de cerveja, pois aproveitei o sol que beija minha face aqui pelos lados da Mooca e muitos jornais, como sói acontecer a um profissional da comunicação.

Ela abre o saco com cuidado. Percebo que a senhora não quer fazer baderna ou deixar restos espalhados pelo chão. Após analisar o lixo e eu analisá-la, algo em torno de dez minutos não mais do que isso, ela recolhe as latas, um cabide desses de lavanderia amassado, alguns papéis que, certamente, são desenhos abandonados pelo meu filho e passa a fitar os jornais.

Pelos seus movimentos acredito que ela saiba ler. Curiosamente ela pega alguns cadernos de Economia que deixei de lado. Não valeu a pena colecioná-los, afinal, a Crise parece não ser tão mais problemática como semanas atrás. Ela para numa foto de Guido Mantega. Tento decifrar no que pensa. Será que se interessou pelo nosso genovês ministro ou saberá da crise? Isso afeta quem vende latas e jornais por míseros centavos de sobrevivência?

A verdade eu nunca saberei. Mesmo sendo jornalista, não quis fazer perguntas a ela o que reflete, em parte, minha mediocridade. Senti-me impotente. O que eu poderia fazer a uma senhora que deveria estar com seus familiares, netos, no aconchego do lar num sábado à tarde? É bem provável que não posso fazer nada. Para ela não há bolsas-família ou coisas do gênero. Resolvi escrever. Apenas para minimizar o quão lixo senti-me; mais até do que as coisas que ela pegou.

6 comentários:

Anônimo disse...

Sylvio,
Pelo seu testemunho, grande beijo no seu coração.
Ana Maria
anamariasampaio@yahoo.com.br

Anônimo disse...

Oi Sylvio Micelli.
além dos olhos abertos é preciso prestar atenção. Na tela da janela
sempre haverá um novo filme.
Texto Lindinho o seu.
abs
Ricardo Faria
ricardo@vejosaojose.com.br

Anônimo disse...

O que falar? Não há nada a dizer. Basta sentir. Os olhos d'alma são necessários nesse momento, para que não só imaginemos a cena, mas para tentar fazer parte dela. Adoro a linguagem poética, a doçura nas palavras... e gestos também são imprescindíveis. Quando me deleito com tal meiguiçe me recordo daquele rapaz, de macacão preto e blusa desfiada... o mesmo rapaz que escreve textos como esse que acabei de ler. Te amo! Ontem, hoje, sempre!

Anônimo disse...

Hehehehehe! Very cool!

Anônimo disse...

Eia, Sylvio, essa foi forte. Título instigante, tive que parar pra ler...



Bj,


Alethéia.

Anônimo disse...

Sylvio, parabéns pela síntese da natureza humana contida nesta crônica.

Meus sinceros parabéns, sem brincadeira...

...creia-me que também já analisei essa situação - não desse modo, óbvio - e realmente nos sentimos um nada perto de seres humanos que, devido às circunstancias, não tem consciência do fato de viverem em sociedade, e sim à margem dela; por outro lado, a nossa consciência também ignora esse fato e essas pessoas, mas quando nos deparamos com isso, o choque inconsciente se impõe, e é brutal: somos todos iguais, somos humanos!!!!!!

Foda, muito foda (não poderia deixar de fora uns palavrõezinhos, vá lá "ò CAROLAS")

Para entender as causas, analisem isso:

http://www.youtube.com/watch?v=HqYU_AC4AU0