domingo, maio 31, 2009

Carta ao herdeiro


Carmine Victório (*)

Que bom que você chegou ! Já havia sonhado com este momento várias vezes, porém a realidade mostrou-me uma face muito mais bela e tranqüila. Sua chegada veio trazer-nos a continuidade de nossas próprias existências e talvez até um novo rumo à elas. Também a supressão das deficiências, afinal nunca sabemos o quanto somos capazes quando novas coisas acontecem.


Somos eternamente náufragos dentro de nós mesmos.

Não entendo bem a magia da concepção, nem tampouco ultrapasso o conhecimento mediano de Genética. Ah, as ervilhas ! como descobriu-se tantas coisas com elas. Quem sabe eu entenda bem de coração e isso basta dentro da pequenez humana.

Meu filho, as coisas não estão muito bem por aqui. Nessa transcendência que você acaba de cumprir, às vezes questiono e, um dia, você também irá fazê-lo, se o melhor negócio não era permanecer onde estava, longe dos desmandos daquele que um desavisado ousou chamar de ser humano.

Nesta galáxia, particularmente neste exato ponto tropical abaixo do Equador, vejo toneladas de pessoas que, feito massa de manobra, aguardam uma oportunidade, qualquer que seja ela. Um emprego, um prato de comida, um político que resolva todos os problemas, um novo Maomé, o retorno de Jesus, quem sabe até a presença Dele, ao vivo e em cores.

Medíocres pensamentos por vezes sobejam minha cabeça. Sinto o sussurro da brisa me lembrando que o mundo acabou mas todos nós não nos demos conta disso. Ignoro essa pusilanimidade e escrevo tentando decifrar mistérios que estão sob nossos narizes, mas o cérebro obtuso não os observa.

Você que chega agora vai gargalhar quando descobrir que os grandes mestres, tais como Shakespeare, Kafka, Dante ou Camões, escreviam com penas. Aliás não escreviam com penas e sim, com o pensamento. Ah ! quantos ensinamentos ! Para que servem ? Você que habita sua nova morada próximo ao terceiro milênio descobrirá um dia, porque certas razões não combinam e, que nem tudo que é legal, é moral. Hoje, a tecnologia avança em velocidades geométricas. Máquinas já nos substituem no trabalho. Ainda hão de inventar um cérebro perfeito, onde não haja afeto e que, com exatidão algébrica, reduza todos nós, pobres mortais, ao pó do qual viemos.

Gostaria de oferecer a você, filho, um mundo sem guerras idiotas e que não levam a nenhum lugar, exceto àqueles sete palmos garantidos a todos nós. Como seria bom ver o patriotismo não apenas na sazonalidade da copa do mundo. Mas circo é o que se oferece como entorpecente ao povo na tentativa de desviar-lhe a atenção de assuntos realmente importantes. Tudo na vida é cíclico e, nem sei mais, se Warhol estava certo ao afirmar que todos terão seus quinze minutos de fama. Talvez alguns instantes e nada mais, como os corvos de Poe.

Hoje em dia, meu querido, primeiro se acusa para depois fazer aquela velha verificação tardia dos fatos, não importando nada nem ninguém. Degolam-se as metas e os sonhos em nome de uma coisa que nem nome tem, ou não se sabe determinar. A humanidade valoriza algo exterior a ela perdendo-se a essência e a noção do certo ou o errado, talvez duvidoso. Mas não pense você que é só isso. Há também a competição atroz, transformando-se o companheiro em algoz, aqui ou alhures.

Gostaria de informar coisas boas, que a vida é bela ou a fome não existe. Infelizmente, a história, que é uma biografia dos humanos à qual falta a última página, me desmentiria. Daí um dia você vai perguntar ao seu pai se não há nada de bom por aqui. E eu direi à você que, apesar dos pesares, a lealdade e honestidade devem prosperar.

Informarei ainda, que você será tratado como um mero número, aliás vários deles. Que para a maioria das pessoas, você não passará de um idiota se fizer e pensar apenas coisas boas e, que a sociedade estará pronta para apertar o alarme quando você errar. Será alvo de inveja e maledicência e, por muitas vezes, estará em dúvida se as pessoas que chegam até você, o fazem pelo que você tem ou pelo que você é. Eis o grande dilema de nossas vidas. Peço que não aja apenas por diletantismo. Prazer é bom mas a sobriedade é a base de todas as demais coisas, em conjunto.

Faça o que fizer, seja o que for, dê tudo de si mesmo. Ame alguém e tenha seus filhos. Passe a eles a herança da dignidade. Sei que isso pode soar anacrônico ou datado. Já ouvi em algum lugar. Talvez tenha sido aquela brisa do fim de tarde que anuncia quando a lua chega e que devamos nos preparar para um novo dia. A história se repete e, é bem provável, que o mundo gire por causa disso. Nunca se iluda com alguém ou qualquer coisa, pois a desilusão traz-nos um quê de impotência minando aquilo que temos de melhor, ou seja, a esperança de que qualquer dia desses as coisas irão melhorar.

(*) Texto originalmente escrito em 1998 sob o pseudônimo Carmine Victório para concurso da Editora Lítteris do Rio de Janeiro

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