Sylvio Miceli
Acordei pouco das sete, aliás, como de costume. Não sei se meu organismo tem vida própria ou se há uma espécie de osmose entre eu e ele. É certo e sabido que meu corpo desconhece feriados e finais de semana. Deve estar acostumado com o atribulado cotidiano da cidade grande.
Não consigo enrolar em cima da cama. Minhas costas começam a doer e isso me irrita. Levanto bem devagar para não acordar minha mulher. Ando trôpego na escuridão tateando paredes e móveis. Entro na cozinha. Sobre a pia, restos de comida e o azedume da garrafa de champanhe aberta convidam alguns mosquitos, daqueles que estudamos na escola. Lembro-me das aulas de biologia e das feiras de ciências que não voltam mais. Por alguns instantes, alguns rostos passam pela minha cabeça. Não consigo ligá-los aos respectivos nomes. Um emaranhado de faces conhecidas e que, provavelmente, nunca mais verei. O que essas pessoas estariam fazendo ? Estariam todas vivas ? Já teriam formado uma família ? Essa roda-viva de indagações percorriam meu cérebro.
Num estalo, volto à realidade. Tomo um copo com água como se limpasse minhas entranhas. O silêncio é total, só quebrado quando aperto a descarga do banheiro. Resolvo tomar café na padaria e torço para que ela esteja aberta. Já imagino o rapaz que me serve reclamando da vida e dizendo o quanto é duro acordar cedo e trabalhar num feriado. Eu responderia a ele, que o mundo é um moto perpétuo e rotineiro e que Ano Novo significa uma folhinha nova na parede, apenas. É o recomeço, sem dúvida, mas é impossível nos livrarmos dos problemas quando muda-se apenas o último dígito.
Abro a porta de uma só vez. Aprendi com o tempo que abri-la, bem devagar, só faz mais barulho. Olho para o céu e nuvens dão o tom chumbo. O sol não quis se levantar. Talvez ainda esteja comemorando. Subo a íngreme rua da padaria. Caixas e restos de rojões sujam as ruas. Tudo virou uma pasta com a garoa da madrugada. A padaria está fechada com um aviso que só abrirá à tarde.
Chego à grande avenida do meu bairro. Só não estou em completa solidão porque alguns bêbados dormem ao relento. Sinal de que nada mudou. Alguns pássaros, que nunca aparecem expulsos pelo barulho e poluição resolveram assobiar, cantarolar e tossir um pouco. Acendo um cigarro e já quebro uma promessa feita na noite passada. Olho para a avenida vazia que se mescla ao meu vazio. Procuro algum lugar aberto e, se possível, uma banca de jornais. À distância recebo a companhia de um pequeno cachorro que anda em círculos e aproveita o sossego. Novas gotas de chuva pingam e o vento frio corta minha pele. Sigo em frente, como sempre, procurando algo. Não são só padarias e bancas de jornais que tento achar. A maior parte das vezes quero dar um rumo à minha vida.
Aquele pequeno cachorro acelera o passo e começa a correr desvariadamente. Quis a sorte ou o contrário dela que, naquele exato momento, um carro velho aparecesse e atropelasse o animal. Penso como são poucos os momentos de felicidade... Corro em direção ao cachorro e aparece um senhor maltrapilho sei lá de onde. Ele fala coisas que não consigo entender. Recolhemos o cachorro que já sangrava e o colocamos num canto de uma banca de doces. Só entendo o velho quando ele olha para mim e afirma que não havia mais jeito, que eu podia ir embora. O torpor tomou conta de mim, talvez pelo sentimento de impotência e o reconhecimento disso, que é o mais difícil.
Continuei minha caminhada mas a cena do atropelamento não saía da mente. Ao percorrer o trajeto contrário fiz questão de pegar um ônibus tentando deixar para traz o cão e o velho. Quando a condução passou pelo local, ambos estavam lá. Decidi não voltar para casa. Segui o trajeto da condução até o próximo bairro onde tive mais sorte e o comércio, às moscas, me aguardava. Estava há duas horas na rua. Resolvi apenas comprar pães e o jornal.
Quando cheguei em casa, minha mulher já havia acordado. Reclamava da minha demora e da louça que jazia sobre a pia. Nada relatei sobre o ocorrido. Ela falava mas não lhe dava atenção. Comi pouco e me deitei. Cochilei e assustado acordei pensando que tudo havia sido um pesadelo. As provas contrárias eram o jornal e saco de pães sobre a mesa.
Dei uma desculpa tosca e saí em procura do senhor e do animal. Não estavam mais lá e, estranhamente, não haviam marcas de sangue no local nem vestígios de água. Perguntei a mim mesmo, aonde haviam se enfiado. Cogitei que aquele senhor poderia ter levado o cachorro para sua casa, ou quem sabe, se aquilo teria sido apenas um susto estúpido e que ambos seguiram seus caminhos. Retornei e minha mulher perguntou se ocorrera alguma coisa, pois estava de semblante fechado, o que não era comum. Falei apenas que estava cansado.
Nunca saberei o que ocorreu naquele lugar. As imagens estão vivas na minha retina. Passo diariamente pelo local e tento imaginar quais seriam os desígnios de uma energia superior que havia elaborado aquela situação. Procuro descobrir o que o destino havia reservado àquele animal e ao velho. Jamais terei respostas. Enquanto isso, ainda vislumbro rumos à esmo na vã necessidade de ser humano.
Texto premiado e publicado na antologia “Best Seller - O Melhor da Literatura” da Litteris Editora 1998/9 (pg. 45)
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