quarta-feira, outubro 15, 2008

A evolução humana e o litígio das palavras

por Sylvio Micelli

"A liberdade, a qual, mesmo tardia, contudo olhou para mim inerte" (Libertas quae, sera, tamen respexit inertem). Virgílio (70-19 a.C.), Écloga, I, 27

Ao longo deste ano temos observado o direito à vida de embriões congelados e, por conseqüência, a pesquisa com células-tronco. Sob o aspecto legal seria apenas mais uma matéria pertencente ao chamado Direito Positivo de ordem pública e constitucional.

Como num estádio de futebol, prática constante neste país, as pessoas são induzidas a torcer para Flamengo ou Fluminense; ou Corinthians e Palmeiras, sem que lhe sejam concedidos subsídios bastantes para analisar a questão a fundo. Por sinal, a maioria, decerto, estará preocupada com as mais recentes cenas picantes dos folhetins das nossas TVs abertas. Já refuto aqui, de imediato, que o tema fosse objeto de um plebiscito. O último que tivemos, sobre o desarmamento, foi falho e risível, além da alta monta financeira envolvida. Além disso, tento imaginar como seria uma campanha hipócrita pela TV, a mostrar fetos mortos, células vivas e torcidas organizadas sedentas por mais imagens horrendas para o regozijo das cleópatras de plantão.

O assunto passa, invariavelmente, pelo direito à vida, a envolver preceitos religiosos e morais. Este embate é regulado pela ética.

Pois bem. A humanidade parece fadada a caminhar para trás quando o assunto é seu próprio crescimento e desenvolvimento. Historicamente, a Igreja – leia-se aqui a Católica, principalmente – sempre teve por hábito prestar a sua não contribuição ao avanço da sociedade. Isso não mudou ao longo dos séculos e, certamente, não mudará. Os dogmas são eternos, ou apropriando-me de uma visão de Karl Marx, “a religião é o ópio do povo” (*). Não entro aqui na questão meritória do catolicismo, mas não posso nem vou vendar-me e não constatar que muito do atraso da sociedade se deve a este e outros tipos de visão turva.

Moral? O que vem a ser moral? É importante destacar que há tênue diferença entre o morus romano e o ethos grego. Este tem um caráter normativo determinado pela sociedade. Aquele tem um aspecto personalista, ou seja, varia de acordo com o conceito de cada um. De fato, refletir sobre a vida, não é algo simples. Mas vai do conceito. E apimento mais a discussão, ao traçar um paralelo com o aborto, outro assunto a ser discutido por ferozes torcidas.

O que é moral? Abortar ou ver uma criança morrer de fome? O que é ético? Permitir que pesquisadores realizem seu trabalho em prol da humanidade? Ou discutir, apenas de forma léxica, quando começa a vida?

Oras. O Supremo Tribunal Federal tem sido instado sobre o tema, a responder do ponto de vista vernacular. Qualquer resultado que não seja a ampla e total liberação da utilização de embriões congelados que possibilitem a continuação de pesquisas será legal, aprovado pela instância tida como “guardiã da Constituição”; será moral para boa parte das mentes inexpertas que passam ao largo da discussão; será ética para determinados setores da Intelligentsia nacional. Mas será que podem estancar o direito de outra parte da sociedade que respeita e apóia o desenvolvimento humano em todas as instâncias?

Os embriões ora utilizados estarão vivos para todo o sempre e para o desenvolvimento de toda a humanidade. Isto é o que realmente importa.

* em alemão "Die Religion ... Sie ist das Opium des Volkes.") é uma citação da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (em alemão, Kritik des hegelschen Staatsrecchts) de Karl Marx, obra publicada em 1844.

Texto originalmente escrito em 04/04/2008

Um comentário:

Tânia Meneghelli disse...

Muito pertinente essa postagem. Considero que a cúpula da igreja católica tem um enorme telhado de vidro. Fora todas as atrocidades cometidas ao longo da história, hoje, especificamente, está imersa num dilema interno com trágicos casos de pedofilia.

Mas na minha opinião não há nada mais obscuro do que tentar vetar as pesquisas com células-tronco embrionárias. A ciência sempre avançou e a fé se manteve, porque são questões independentes, de dois mundos diferentes.

Nem vou entrar no mérito da discussão entre a imposição de dogmas religiosos e a falta de fé. O que me interessa, de verdade, é ver o bom senso prevalecer.

Sabe o que realmente me interessa? Ver meu filho, diabético desde os três anos e hoje com 23, livre das limitações e sequelas que essa doença impõe. Quero simplesmente ter a oportunidade de vê-lo poder viver tranquilamente, sem estar escravizado às aplicações diárias de insulina, sem olhar o relógio o dia todo para controlar horários de alimentação e sem precisar sofrer tanto com crises de hiper/hipoglicemia ou por causa de uma simples gripe.

Quero ter a felicidade de um dia ver o filho de uma amiga, tetraplégico desde os 17 anos e hoje com 24, podendo ao menos coçar o próprio nariz sozinho.

Parabéns pelo texto, Sylvio. Diante da falta de bom senso é impossível se calar.

Beijoca!